Corre de mim

segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Meu dia sadio entra em ti, vadio
Sem nome, sem dor, sem pele, sem 'eu', vazio

E corre de mim, faz troça de mim
Enxuga o suor de mim

Escapo dele, sem escapar de ti
Escorrego
feito um córrego
filho de ti


E abraço teu passo
pra não te deixar
Fugir pra um lugar
Onde não há lembrar...
De mim

Ilustração: "Fuga" - Kandinsky

Edivaldo

quarta-feira, 19 de agosto de 2009
Era teimosa, ah, se era! E sempre tinha uma resposta... ou vinha cheia de perguntas... Mas que saudade... Saudade daquele sorriso abrindo o dia e de quando cantarolava pela casa e meu humor mudava.
Encrenqueira! Nossa! E como! Brigava, chiava... até que ficasse tudo do “jeito certo”, do jeito dela, claro! Mas, e quando vinha serena e doce, braços mansos e abertos pra me receber? Ah! Bom até de lembrar...
E dá uma saudade de ouvir aquela voz, sentir o perfume de quando não usava perfume algum! De buscar aquele olhar que me provocava e inventava sempre uma surpresa, brincava de ser meu.
É bem verdade que hoje não estou sozinho. Sempre vem uma ou outra, faz charme do seu jeitinho, mas ainda assim falta tanto dela em mim! Falta é mesmo ela, cujos olhos já não sei por quem choram, nem por onde andam.
Vez ou outra, sinto uma vontade tão indecente e louca de procurá-la, mas sempre fui contra qualquer desatino, que não posso me perder, nem me humilhar. Por isso mesmo nos perdemos um do outro, pois sempre me faltou até coragem para desatinar.
Se fosse hoje aquele dia da partida, não a deixaria ir...
E faz já tanto tempo, que nem nossos nomes se cruzam mais.
Mulher com rosto de menina marota, travessa, mimada, meio ingênua, meio safada, de dar vontade mesmo de mimar.
Não sou de ouvir canções, acho todas meio cretinas, essas de amor. Mas agora ouço uma canção das preferidas dela, do Vinícius e, sem querer, canto junto, baixinho:

E por falar em saudade
Onde anda você
Onde andam seus olhos
Que a gente não vê
Onde anda este corpo
Que me deixou morto
De tanto prazer
Hoje eu saio na noite vazia
Numa boemia, sem razão de ser
Nesses mesmos lugares
Que apesar dos pesares
Me trazem você...

Foi... foi... foi-se. Ainda está aqui, mas como fosse nada, pois só vive nesse meu penoso imaginar. Nem lhe posso tocar a mão num dia como este, de sol, dia quase tão perfeito não fosse a falta dela.

Fragmentos

segunda-feira, 17 de agosto de 2009


se a culpa é filha mal-nascida do desejo
que não se realiza e nem é eximido
quase o vejo, tão torto e indigente
mas tão presente, é tracejo retorcido.
...
depois que você se descobre e se desvela,
desnuda-se de todo o vestir, de toda a pele.
É a partir daí que se torna homem, mulher,
senhor de si ou servo dos outros.

...


Cada uma das linhas curvas que contorna tuas pernas
são vizinhas minhas todas elas.

Ilustração: O beijo - by Gustav Klimt

Trilogia: ficção de um amor

sábado, 15 de agosto de 2009
Ávida

I.

Toda noite em que chove
Ouso navegar os lábios nos teus cabelos.
Cruzo o mar dos infelizes e aporto na tua pele.
As gotas são todas tuas, sou eu, são minhas
Mas quase distraidamente, tu as sorves
entre os dentes brancos.


Se eu encontrasse todas as coisas no teu corpo
Sem que precisasse um riso frouxo, um vinho,
um copo, um pouco de sal, do mar, de manhã
Ah... eu não seria tua, seria tu!

Mas o teu corpo traria nele minha alma,
Sem passaporte, sem condolências,
Sem paciência, sem tempo ou pressa.
E levaríamos um pouco das dores do mundo,
Das fórmulas e da alquimia etérea
Trovaríamos todas as palavras
Escritas, lidas, faladas, ouvidas
E cantaríamos o silêncio dos loucos.

Ávida por ti, procuro a mim.
E se encontro, morro.

...

Desapaixonado

II.

Teus olhos são tão remotos
que apóio meus cotovelos
sobre eles
como quem se debruça
sobre uma mesa
ou balcão de um bar
numa tarde de domingo
sem graça e desinteressante.

São olhos chatos, entediantes
esses olhos teus
que me falta ânimo ao fitá-los
que perco a fome, a inspiração
e sinto sono
são dois comprimidos
pílulas,
anfetaminas
mas não os quero,
nunca tive insônia

Assim são esses teus olhos
olhos pirão-sem-sal,
olhos estepe furado,
olhos dia-sem-vento,
sem olhar, sem paixão,
sem gosto, cor, odor,
sem coisa alguma

Olhos...
isso para não falar do resto.

...

Pirata saqueado

III.
Trouxe em mim todas as ilhas e terras
As devastadas, as intocadas, as perecidas e as serenas.
Travei longas jornadas, piratas
Pra encontrar o dorso da tua mão e tocar nele meu dedo.

Saqueei os navios inimigos,
Roubei, matei, venci
E, ao cair do dia,
Só me via derrotado
Por ter nada e desejar tudo
Por ser mudo
Mas ouvir teu sussuro.

Nessas últimas noites,
Faltou pouco e quase sucumbi.
Mas lembrei das dores dos poetas,
Dos bandidos, dos banidos
E da beleza da espera,
Da ternura da tristeza
E do relento, do vazio atento
Que é a saudade.

E vivi por ti, por teu encontro.
Mas ao te ver, já não eras minha
Tocavas a mão de outro.

E, nesse dia, sim,
Tornei-me trapo,
Tornei-me homem,
Tornei-me morto.

Ilustração: A moça com brinco de pérola - Johannes Vermeer

Encontro

quarta-feira, 12 de agosto de 2009
Na praça se encontram
E temem se olhar
Talvez sonhem os mesmos sonhos
Ou guardem os mesmos segredos
Mas nem Deus pode lhes dizer
Quantos medos há na vida


Noutro dia, na rua, de novo se cruzam
E temem parar
Parece haver uma escondida vontade
De sorrir, ou de falar
Mas nem o vento
Pode lhes aproximar as mãos sem querer.

Se são duas crianças,
que um esbarrão, um encontro, um tropeço
possa mesmo servir de pretexto
pra quebrar a vergonha intransigente

Mas e as crianças outras?
Que fazem todas elas a morar dentro da gente?

Ai, saudade...

sexta-feira, 7 de agosto de 2009
A dor da cabeça é coisa que passa, assim como dor de dente, dor de amor. Agora, a saudade, ô coisa ruim de tão boa, ah, essa custa. Nem sempre sei do que é a minha saudade, também não sinto todo dia a mesma, mas parece que só de falar, mesmo baixinho, ela vem brincar comigo. Vez em quando é úmida - vem com umas lágrimas - noutras horas, vem descontrolada, mas minha timidez só deixa escapar um sorriso e os olhos se perdem no nada do hoje, no tempo que passou.

Ai, saudade marota das aventuras, do mistério, da música... dele, delas... Ai, dos gostos, dos cheiros, das roupas, das mesas postas, das cadeiras reviradas, do sol, (do ou da?) patinete... dos sapos roucos, do beijo com chiclete, do tempo bom... de quando não importava se vinha chuva ou se era vento sul, de quando dava pra soltar pipa...

Hmmm, saudade boa, mas tão ruim, pois desse jeito, como chega, afasta ainda mais tudo isso de mim!

Porque viver de saudade não é viver
É reencontrar-se com aquilo de que se sente falta pode trazer novos motivos, novos gostos, e razões para futuras novas saudades!

Adama

segunda-feira, 3 de agosto de 2009
Mais uma noite e mais um pub.
Se o nome dela fosse Carolina, Clarice, Cleópatra, ninguém estranharia os seus olhos chuvosos, meio embaçados e sem cor alguma. Mas Adama tinha em sua boca aquilo que lhe cunhava o nome: lábios de fêmea voluptuosa, noturnos e meio salgados, algo sem muitos adjetivos para descrever.
Homens e mulheres, dos profundos ou intelectuais, aos sujeitos comuns e vãos, dos artistas aos burocratas, dos adolescentes aos anciãos, rara era a exceção, todos desejavam encostar em Adama, ouvir qualquer palavra sua, e o anseio era sentir a língua, o lábio, o gosto daquela sua boca.
Adama saía todas as noites, sem querer e sem dar conta dos dias ligeiros. Distraía-se. E era mais uma segunda-feira que passava, ou chegava a sexta, tudo o mesmo sabor de noite.
Encontrava-se numa taberna naquela quarta, e nas duas horas por ali, a conversa já versara sobre política, sexo, os presságios de novos tremores de terra, a música das massas jovens que se proliferava como os vermes, a crise econômica, e sobre a queda na qualidade da massa da cantina da Mama. Nada disso sem um vinho barato pra acompanhar e efervescer os ânimos.
Adama falava pouco e ouvia de tudo, quase sem se pronunciar. Ficava nas rodas, bebia também, e imaginava serem aqueles homens todos uns porcos, vociferando seus brados e cuspindo as falas em cima um dos outros. Nem por isso os detestava, nem sentia repulsa, seu prazer monótono era justamente estar junto àqueles porcos.
Fora Adama, as mulheres que freqüentavam a taberna eram poucas: havia a esposa de Antonino – que algumas vezes ia buscá-lo a rodo ou vassouradas – e uma ou outra garota nova que rondava quem estava com dinheiro para uma rápida trepada e uns “trocados em troca”.
Apesar do tédio dos assuntos rotineiros e repetitivos, e mesmo do desprazer em ver as mesmas caras, ouvir os mesmos ganidos, Adama continuava indo à taberna pelo menos três vezes por semana, naquela sua semana de dias iguais. O motivo era justamente esse: a rotina igual, habituara-se e ia.
Aconteceu o inusitado e, numa quarta-feira dessas, altas horas já, quase seis, os olhos parados de Adama tiveram um sobressalto.
Evidentemente, se o nome dela fosse Cistina, Clarice ou Cleópatra, o motivo da surpresa seria um homem atraente invadindo a taberna e ocupando cada centímetro cúbico do ar que ali se respirava. Mas, por se tratar de Adama, o fato era algo menos pretensioso, e os seus olhos tomaram pela primeira vez uma ponta de brilho quando ali entrou Sísmico – um garoto pequeno, seis anos de idade – chamando pela mãe, uma daquelas garotas ali à espera de um programa pródigo.
O que Adama ocultava nos seus ares de tédio e de solene distanciamento habituais nascia naquele encontro: toda a sua atenção cega era para o menino que coroava aquela sua madrugada.
Não fosse isso, talvez Adama se houvesse chamado Clara, Cleonice, Carolina e pouco importaria, pois seria mais uma das iguais e infelizes mulheres que cruzam noite e dia sem notar sequer sua própria presença.

O dia depois de amanhã

domingo, 2 de agosto de 2009
Hoje é azul, e tem um gosto de flor adolescente...
Essa flor da descoberta, da exposição menos tímida e mais esperta...
Hoje é azul, e faz um som de flauta transversa, brincando nos meus ouvidos,
Dançando pelo pescoço a fazer cócegas gostosas, de rir, sem pensar em nada.
Hoje é azul, e até esqueço do dia depois de amanhã,
Aquele que vem me tirar o sono às vezes,
Com sua cor cinzenta.
Agora não importa, pois à minha porta vejo uma rã, que veio com a chuva e
segue a me dizer: Hoje é azul!